Suíte Master Quarto de Empregada
Por Eduardo Queiroga
Fotógrafo, Professor e Pesquisador. Curador desta pesquisa.
A cidade e a arquitetura – bem mais duradouras – são elaborações dos homens: transbordam de suas vontades, seus sonhos, suas incapacidades e contradições. Cristalizam acúmulos de tempo, costumes e práticas. Invisíveis pelo véu da cotidianidade, inscrevem com a solidez do tijolo e do cimento os valores concretos da sociedade que os sustenta. Regimes de poder atualizam seus modelos de organização e perpassam objetos, espaços, comportamentos, falas. Tudo carrega e é moldado pelo discurso, resultado e causa de dinâmicas de poder. O quarto de empregada é a sedimentação de séculos de dominação.
A ocupação dos territórios. A destinação dos espaços. O tecido dos campos e das cidades. A planta do apartamento. As barreiras que se estabelecem. As divisões, os bloqueios, as interdições. Quem e em que condições se pode acessar determinados terrenos? Nos formamos na relação com o espaço ao nosso redor, com os ambientes que frequentamos.
A porta que divide a sala e a cozinha é a fronteira da periferia da casa. Uma linha, nem sempre imaginária, separa dicotomias dentro de uma mesma casa, que é reduto de intimidade para uns e local de trabalho para outros. Casa como abrigo, ambiente seguro e de acolhimento de uns. Lugar da obrigação, do ganha-pão, da submissão de outros. A segregação entre espaços “sociais” e de “serviço”, como elevadores, entradas e corredores, escancaram contradições. O contraste entre o quarto de empregada e a suíte master delineia muito precisamente a divisão de classes e a herança – naturalizada e modernizada – da lógica colonial de exploração.
As cidades nos falam coisas, assim como suas construções, os espaços físicos, as configurações dos espaços. Ou somos nós que enxergamos, que lemos, vemos coisas através das casas, das construções dessas organizações espaciais? Elas “querem nos dizer algo” ou nós queremos silenciar algo?
Ver o invisível se coloca como um paradoxo. Quando a invisibilidade se dá através da anestesia, da perda da sensibilidade, que esmaece os contornos de sua presença pela lida repetida e cotidiana, há algum gesto possível que reverta esse apagamento? A fotografia comunica, mas não apenas no sentido de levar informação, mas no de causar conexões. Aquele que faz fotografia, experimenta e nos oferece um mundo acessado de uma outra maneira. Isso se dá dentro de seu tempo, na relação com as outras pessoas e com o ambiente, respondendo aos estímulos e constrangimentos sociais. Ao compartilhar seus modos de ver, propõe – como potência – rupturas com o vigente.
O que se coloca à frente da câmera de Afonso – ou para onde Afonso aponta sua câmera – não é o desconhecido ou inusitado. Não se trata de um trabalho que busca nos ambientes mais inóspitos o seu cenário. Nem nos fenômenos mais inéditos e exclusivos o seu objeto de observação. Muito menos em pessoas incomuns ou que desempenhem atividades raras. Apesar de serem cenas amplamente habitadas por pessoas, elas, as gentes, não aparecem.
O que vemos nas suas fotografias são espaços já visitados, familiares em algum sentido. Todas essas cenas, o espectador já as conhece por aproximação, por semelhança, por já ter estado em ambiente parecido, por já ter visto isso em outra casa. Talvez até na sua própria casa.
Não é o exótico, mas causa espanto que isso seja normalizado – é bizarro e normal ao mesmo tempo. Que tristeza é encontrar no nosso cotidiano marcas, cicatrizes, tatuagens, inscrições de um mundo, de práticas e pensamentos que não poderiam estar, ser, circular sem nosso estranhamento.
Uma das maneiras de se pensar através de imagens é trabalhando com conjuntos, aproximando semelhanças ou colocando lado a lado as diferenças. Criar relações, intensificar padrões, perceber distinções naquilo que parecia tão igual, articular tipologias: percursos de investigação e construção de narrativas.
No trabalho de Afonso, encontramos principalmente cenas captadas nas suítes e nos quartos de empregada, ambientes que dão nome ao projeto. Mas não somente. Podemos ver ali outros rastros que ratificam a tensão que apoia essa pesquisa, a fissura social e as ideologias que agem pela manutenção do status quo. Posso destacar alguns conjuntos coerentes, mas é importante que não fechemos a obra apenas nessa forma de abordagem.
De um lado vemos a arrumação e quase esterilização da suíte. Elas seguem um padrão, na disposição dos móveis, no planejamento dos tons, no esticado dos lençóis, paredes lisas, conjuntos de fronhas, cortinas e condicionadores de ar. No outro extremo, a tábua de engomar, as prateleiras, o empilhado dos objetos que parecem não ter espaço no mundo civilizado da área nobre da casa. Nobreza e civilização são termos que carregam em si desiguais relações de força. Na lógica colonial, existem os povos civilizados e os bárbaros, sendo os primeiros mais evoluídos, justos e bondosos. As práticas de dominação muitas vezes são estabelecidas como necessárias, como processos de beneficiamento: a benevolente atitude de levar a civilização aos não civilizados, mesmo que isso só interesse a um dos lados, o da dominação.
O contraste se faz por comparação. Daí confirmamos semelhanças e agrupamos os iguais. Mas, colocando lado a lado, aquilo que parecia não se diferenciar mostra suas sutilezas, suas diferenças. Penso que essa é uma das maiores forças do trabalho, e também uma possível chave de leitura: nos percebermos no espaço naturalizado da divisão das casas, na geografia dos cômodos e dos incômodos que isso provoca – ou deveria. As fotografias estampam o contraste.
O número de empregadas domésticas que dormem no emprego diminuiu bastante, em parte como resultado de conquistas trabalhistas possibilitadas por governos de um passado recente. Isso se reflete em uma reocupação desses espaços, um novo destino que se repete na maioria das imagens.
É curioso que o destino mais comum dos quartos de empregada tenha sido virar depósitos, ambos, em certa parte, subprodutos da ostentação. Do espaço da empregada para o espaço do excedente consumista, das coisas que transbordam das relações de desigualdade/acúmulo/consumo/economia. A arquitetura, mesmo que repaginada, é rastro da relação de exploração possível apenas em uma situação de desigualdade. É o contraste que comentamos acima.
O trabalho exige um deslocamento, ir às casas, entrar no espaço íntimo dos lares (contraste entre casa/lar e casa/trabalho), ultrapassar fronteiras privadas e, ao mesmo tempo, tratar das fronteiras internas de classe e de território. Quarto de empregada: gleba cedida temporariamente.
A crítica que Afonso parece trazer depende da aceitação de sua presença no território estrangeiro – do outro. Ele depende do acesso e exposição ao espaço que pretende questionar – e aí é possível pensarmos na questão como pergunta para além do julgamento.
Me parece que Afonso quer tensionar e (se) questionar essa configuração espacial tão característica das plantas arquitetônicas de classes média e alta, principais empregadores de trabalhadoras domésticas, mas de uma maneira mais pedagógica que inquisidora ou acusatória.
A desigualdade perversamente naturalizada permite ou orienta a que as classes superiores se enxerguem como portadoras da civilidade, dos bons valores, da etiqueta e da educação. Uma percepção alinhada às práticas coloniais que justificam invasões e explorações – mesmo na forma de preconceitos – como benevolência e esforço de levar “melhores” condições aos povos bárbaros.
Suíte Master Quarto de Empregada aposta em um peso desigual entre o espaço organizado, limpo, asséptico (monótono, aguado) da suíte e o orgânico, caótico, desestruturado, desordenado do quarto de empregada. Aponta para cartografias sedimentadas na nossa estrutura social, repletas de injustiças, mas invisibilizadas pela naturalização cotidiana de nossas práticas.